Roberta não vai ao gabinete do chefe e ele também não a volta a chamar. Com o ar que tinha no estômago, de comer à pressa, vem-lhe à boca um arroto, muito grande, de porporções inimagináveis. Carlos não tinha aprendido com a cirurgia. Tinha ficado a comer depressa na mesma, uma vida stressante e, estar fechado dentro de quatro paredes, estas um pouco diferentes das anteriores.
Sem mais nem menos, o chefe tem um ataque de raiva, seguido com um de choro. Antes de o ter, e já a pensar que iria ser assim o resto do seu dia de trabalho tranca a porta e faz das suas. A primeira coisa a ir para o chão é a prenda de Roberta. Depois vem a mesa onde estavam os despachos assinados à espera que fossem distribuídos pelos departamentos clínicos. E por fim, e com a raiva já no ponto máximo, manda a cadeira contra a parede. Depois de tudo, e já com a cara toda enlargimada, com um corte limpo no braço esquerdo, com uma direcção não definida de um aquário que ele tinha partido e que um pedaço tinha raspado no corpo de Carlos.
Naquele labirinto até chegar ao chefe, era necessário passar o documento identificativo duas vezes e seguir em frente numa porta blindada com código que, secretamente, estava em todos os cartões dos trabalhadores dos hospitais, na parte de trás, por baixo da banda magnética.
Carlos, senhor dos mistérios, descobriu no primeiro dia de chefe, após aquela desarrumação, que no canto direito do gabinete havia uma saída directa, através de um elevador para o local onde ele estacionou o carro. Ultimou a sua saída, apagou a luz do seu espaço, avisando a sua secretária que se tinha ido embora. Desceu no elevador metalizado, que anunciava o tempo que faltava até à chegada ao parque de estacionamento, e ao entrar nele, rebenta. Diz tudo! O que queria e o que não queria, frases correctas e frases sem sentido. Palavrões e palavras científicas.
Sai, naquele dia, do parque de estacionamento, a uma velocidade extrema, não seguindo os conselhos do médico português. Quase que ia atropelando uma pessoa, mas o sistema de travões automáticos do carro protegeu o utente que não tinha culpa do chefe estar enervado. Parecia um cão raivoso.
Chega a casa e Carlos começa a fazer as malas. A meio de tal actividade pára, desfá-las, põe tudo no sítio e volta a sair de casa, ainda danado, muito introvertido e com umas bochechas completamente cheias de ar, sinal que dava a entender a grande fartura, cansado da monotonia, fora de si. Desce à rua principal e pega na primeira mulher que vê. Agarra-a pelas costas e beija-a. Descarrega ali a força emocional que tinha, no roçar de lábios quase que obrigatório e não desejado por ele, mas que ele fez sem pensar. Depois deixa-lhe um papel no bolso esquerdo de trás das calças e pede-lhe desculpa. Brincou com os sentimentos dela, tal como lhe haviam feito há uns anos. Sem força de vontade, e com uma cara chorosa, vai à estação do DLR mais próxima, ainda com traços de novidade, e põe as pernas na plataforma onde o comboio iria chegar dentro de pouco tempo. Mas ele não se lembrava que àquela hora as carruagens não obrigavam o condutor a chegar ao fim da linha e, neste caso, aquele comboio ficou no meio da plataforma, devido à sua dimensão.
Para Carlos aquele, foi um sinal de fracasso, mas também um sinal positivo, que devia continuar com a sua vida. Ele tira as pernas dali. Levanta-se do local de onde estava e põe-se a caminho do fim da plataforma para conversar com o motorista que estava do outro lado do "help point", mas, quando ele ia carregar no botão, o comboio partiu. O que ele ouviu do outro lado foi apenas ruído, sem possibilidade de perceber alguma voz humana decente.
Ele fecha os olhos e imagina-se no céu, acima das nuvens, deitado nelas, ao lado de uma rapariga bonita, e ao fundo um jardim, como que fosse o paraíso, a utopia da vida, a não chatice ilimitada. Mas de repente regressa a Terra, cá a baixo onde a não-utopia é viver, devido ao barulho que existe em tudo, as fricções de placas tectónicas e a nua e crua da verdade.
Mas algo ele tinha pensado... Percebido que a realidade não eram estratagemas, mas sim aquilo, de forma directa... Então depois de pensar tudo isso, põe-se a caminhar sobre os carris, roçando nos balastros de cor clara contrastando com outros de cor já escura, sujas de óleo. Todos os comboios que ali passam apitam para ele sair dali, mas ele continua junto à linha, a passos curtos, em direcção ao Sul.