sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A memória praiana (XLIV) - Uma nova vida em Londres

Passadas duas semanas, Roberta traz as cartas todas que estavam no correio para Carlos. O que é de realçar é a alteração da proposta que o hospital londrino lhe fez. Ele passaria a ser o número 2 do hospital. Ele sorriu bastante com tal comunicação. Outra era relativa aos amigos que ele tinha em Odeceixe.

Carlos ainda estava confuso com os novos órgãos, mas a cabeça dele mantinha-se a mesma. Ele, ao ler a primeira carta, pede a Roberta para se sentar. E começa a falar:

- Dear, eu não te contei nada, mas um hospital em Londres fez-me uma proposta para ir trabalhar para lá. Não te contei, porque ainda tenho uma grande mágoa de não ter conseguido seguir o meu sonho respeitante à profissão. Depois daquele dia em que eu dei a conferência de imprensa aos londrinos, recebi a tal carta, à qual respondi que aceitava o cargo de membro do Conselho de Administração, dependendo da minha doença, sem prejuízo de despedimento. Eles não responderam e, ao que parece, esta é resposta. Não consigo desfazer este nó que aqui tenho, daí te ter escondido.

Roberta continua calada e refere que ele não ia a Odeceixe há dois anos e que agora tinha recebido uma carta de lá. Carlos chama Roberta para mais perto dele e começa a ler a carta que tinha recebido.

“Olá Carlos,

Já é o segundo ano que não passas férias por cá. Guardei a morada dos teus avós, há uns anos e, dessa forma, decidimos este ano contactar-te. Aqui continuamos com a mesma rotina. Ir à praia de manhã e ficar lá até à noite, almoçar, por vezes, ao restaurante ao lado da casa onde moravas, a jogar à sueca. Tudo como antigamente.

Sentimos a tua falta, porque animavas um pouco o “pessoal” e pensámos que te tinha acontecido algo. Esperemos que recebas a nossa carta o mais breve possível e que respondas.



Beijinhos da malta de Odeceixe”.

Carlos, com ar de saudade, diz a Roberta que aqueles amigos que ele tinha, eram grandes companheiros deles e que até havia uma rapariga no grupo deles com o mesmo nome de Roberta, pelo menos o primeiro e o segundo.

- Ajudas-me a escrever a resposta, por favor? As mãos, hoje, não estão num bom dia, diz Carlos.

Roberta responde afirmativamente e Carlos começa a falar:

Olá Família Antunes e Oliveira,

Espero que esteja tudo bem convosco. Agradeço que me tenham enviado uma carta de preocupação, à qual eu estou a responde com muito gosto. Certamente perguntar-se-ão o que se passa comigo, já que há 2 anos que não vou a Odeceixe passar férias. De facto, o ano passado tive atarefado com a minha partida para Londres e tive de regressar a casa no meio de Agosto. Apenas vi o Sandro e a D. Antónia ao longe. Este ano é mais complicado. Apesar de estar de férias e em vias de pertencer ao Conselho de Administração de um hospital londrino conceituado, o cancro que tinha no estômago e nos intestinos alastrou de mais e tive de ser operado. Estou no Hospital Central aqui do distrito, a recuperar das grandes operações que me submeti. Conseguiram-me animar um pouco agora. Espero que, com as palavras seguintes, consiga eu fazer-vos relembrar memórias que foram passadas há alguns anos:

Naquele ano tudo foi diferente, não foram apenas as idas ao chapéu nem os jogos de cartas. Foram conversas, desabafos, crítica, sugestões, invenções e novidades. Alterou-se a rotineira vida de ida e vinda da praia. O aniversário da “us média” foi divinal para mim. Aquele 21 de Agosto deu para perceber que algo não estava bem e acabei por decidir, após conversa com a Sofia Catarina que tinha de fazer algo.

Na praia aproximei-me bastante de vós. Adorei esses tempos. Continuo a dizer que a “us velhota” é o máximo e que a D. Antónia deixa saudades pela sua actualidade! Os restantes adultos não pensem que não marcaram, mas todos deixaram marcas que são impossíveis de esquecer: a mãe da Sofia Catarina por ser canhota, como eu. O pai e o avô por terem parecenças e terem uma forma de vida própria distinta. Quanto à mãe da “us média” o que há a dizer é… A sueca é algo que nunca se esquece, mas sempre se aprende.

Quanto ao pessoal mais pequeno, a companhia foi a melhor de todos os anos. E, já para não falar, do não preconceito e da abertura imensa existente.

Só me resta agradecer e desejar que me façam companhia por muitos mais anos.

Cumprimentos,

Carlos.

Após Carlos ter terminado o texto que Roberta tinha escrito para enviar para os Odeceixenses, entra o médico na sala alegre e dizendo que dentro de duas semanas, tudo indicava que Carlos tivesse alta. Roberta não consegue conter as lágrimas e sai do quarto a chorar. Carlos, mais rijo, pede ao médico para lhe explicar tudo o que lhe tinham feito e os cuidados que ele passaria a ter de ter. Eram imensos, desde uma alimentação mais equilibrada, menos stress e mais qualidade de vida.

O paciente agradeceu com uma tentativa de “passou bem” não conseguia, porque a força que ele tinha ainda não era a suficiente.

Quando o médico sai, Roberta regressa. Carlos pergunta porque é que ela não chorou à sua frente, porque as lágrimas, não tinham mal, porque Roberta estava sempre dentro da caixinha sentimental de Carlos. Ela sorri e aconchega-se ao lado de Carlos, junto ao seu braço direito.

domingo, 15 de agosto de 2010

Do branco ao cinzento da vida (XLIII) - Uma nova vida em Londres

Algo de especial. Mesmo especial. As lágrimas que corriam pela face esbranquiçada de Roberta indicavam algum choque. Foi ao ler uma dos desabafos de Carlos. Mais uma vez sem título, mas com, um carinho textual inigualável:

“Estou doente. Já sei disso há muito, mas não lhe quero dizer. Há anos… Há anos… Um dos meus grandes sonhos era poder viver e ter uma família com ela. Como estou é impossível. Não poderei viver muito mais anos, e ainda tenho este sonhos. Cada dia que passa torna-se imperativo arranjar uma solução. Após dias e dias corridos, chego a uma conclusão. Eu não posso viver, mas a meiose (a divisão celular) ainda ocorre, eu ainda não estou impotente. Há muito tempo que não doo esperma, mas desta vez o motivo é especial. Não o quero deixar assim, como das outras vezes. Vou à clínica mais próxima de fertilidade e, com alguma boa vontade, conseguirei livrar da doação, os espermatozóides não aptos ou com alguma fracção de DNA alterado que possa trazer problemas ao rebento. De certeza que Roberta não irá gostar da ideia, nem nenhuma vez irá pensar em inseminação artificial. Poderei até estar a deitar dinheiro à rua, mas tentar não custa. Ela deve ler este papel, comigo já queimado, num pote e deixado numa das carruagens do metro mais próximo da cidade onde nasci, mas não interessa. O meu sonho é este, já que não poderei nunca dar uma volta ao mundo com ela, estar sentimentalmente bem com ela, e sem dúvida nenhuma, não poderei sem sombra de dúvidas, poder-lhe dizer que ela é a pessoa mais importante na minha vida mais uma vez, nem que o corpo dela é esbelto, que as pernas dela são perfeitas que a combinação que ela faz com a roupa é de cinco estrelas, que adoro o perfume que ela usa, há anos. É com cara triste que termino este texto, mas não tenho forças para mais. As frases já me custam a escrever. A pensar nenhuma resposta chega. Sempre disse que estava velho, que já tinha dores de velho. E ninguém ligava. Sempre disse que era diferente e apenas ela conheceu-me quase a cem por cento. Era com ela que eu queria terminar a minha vida, com aliança ou não, com filhos ou não, mas com uma certeza, vivo ou morto, sentir-me-ia bem, reconfortado e, sem falta de carinho e amor”.

Carlos continuava em coma, após Roberta ter lido o texto, este em voz baixa. Dá-lhe um abraço forte e tão aconchegado que os cabos que o monitorizam artificialmente são postos em perigo. Por pouco, o ar que ele inspira não era desligado. Ela não dá por isso e ao terminar o aconchego corporal, ajeita os lençóis da cama e senta-se de novo no cadeirão castanho.

Cristina, ao ver a filha destroçada, entra no quarto e fá-la sair de lá, dizendo que precisa de falar com ela, com certa urgência.

Cá fora, já no frio corredor, mas em pleno Verão, inicia-se uma longa conversa. A mãe começa por perguntar a Roberta acerca dos pais de Carlos. Roberta responde-lhe que ambos tinham morrido num desastre de automóvel e que Carlos não o sabia, apenas o sentia. Daí ter ligado para Cristina e não para os pais. A pergunta seguinte prende-se com a relação que ela tinha com Carlos. A resposta a esta questão vem depois de um engolir longo de saliva. Tardou, mas ao primeiro movimento bucal da filha, Cristina adianta-se e pergunta-lhe se eram namorados. Roberta diz à mãe que não. E começa-lhe a explicar:

- Nós temos uma relação maioritariamente confusa. Há momentos em que eu sinto que ele me ama e eu dou a entender que o amo por vezes. Nós somos como pão e queijo, colocados junto um do outro e damos um requinte fenomenal ao outro. Eu, sem Carlos, não era o que sou agora. E de certeza, que, ele sem mim também não o era. Várias vezes ele teve crises de ciúmes, ataques de possessividade. Não obstante, também tinha momentos em que precisava de alguém e eu fui sempre a pessoa mais próxima. Não consigo explicar porquê! Nós tivemos algo que nos juntou assim que nos vimos. Ele tinha e suponho que ainda tem medos. Alguns deles são tão estúpidos como eu me fartar daquela pessoa diferente que eu conheci no meu 10.º ano. É impossível que isso aconteça. Por outro lado, percebo o que ele quer dizer com todos os textos e pontas soltas em mensagens que ele deixou ao longo dos anos e que, eu não lhe disse que reparava. Ele expressava-se de mais e eu de menos. Vou-te contar uma situação: O maior desejo dele era estar um dia comigo, sem pais, sem ninguém. Apenas nós, juntos, como amigos, naquela longa avenida junto ao rio, na nossa cidade. Depois, poder vir a casa e sem problemas, estarmos carinhosamente sentados no sofá, trocando carinhos como os verdadeiros e melhores amigos fazem. Mas ele não conseguiu. Eu não deixei, apesar de saber o que ele queria. Não me arrependo, mas ele esforçou-se ao máximo para seguir medicina e acabou por seguir logística e transportes. Uma área de engenharia que ele detestava. Sinceramente, acho que o vou desligar das máquinas. Ele já fez tanto por mim que agora cabe-me a mim fazer o último desejo dele: “Em coma, não prolongues a minha vida através de máquinas”. Que dizes mãe?
- Fazes bem. Mas antes despede-te dele. Sabes que nunca poderás encontrar alguém que comemore o aniversário de uma amizade e que te dê bola atrás de bola no telemóvel. E muito mais, que, até li, por vezes, em textos que ele te escrevia e que tu escondias de mim e do resto da família. Quando o desligares, ou quando pedires para desligarem a máquina, não tenhas dúvida, sente-o como uma obrigação.

Roberta dirige-se para o quarto de Carlos e entretanto chega o médico com o resultado das últimas análises que tinham feito ao internado. No entanto, quando o médico consegue falar com Roberta, já esta a estava a desapertar o primeiro cabo que mantinha o amigo ligado à vida no planeta Terra.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

As frases descobertas... (XLII) - Uma nova vida em Londres

Em Portugal, continua a cirurgia a Carlos. O tempo naquela sala verde, quase toda electrónica passava à velocidade da luz para os médicos e ao relantim para o doente anestesiado.


Após dezasseis horas de cirurgia e três equipas médicas que rotacionaram na cirurgia, é dado a Carlos o último ponto. Este momento dava início a uma nova vida para ele, o fim do stress e do nervosismo e da má alimentação à base de carne e o início da vida calma, tranquila, com uma alimentação à base de fibras. Além de todas as indicações, a quimioterapia, nos próximos meses era inevitável. O forte cabelo castanho-escuro que ele tinha, ia cair. Ele não estava acordado ainda, mas cá fora, já lhe rapavam o cabelo. Mal acorda, e dá pela falta do cabelo, juntando a isso a água que lhe tinham dado indevidamente, o organismo de Carlos entra em falha. Os batimentos cardíacos alteraram-se de forma repentina. O monitor que estabelecia contacto e registava a pressão arterial e os batimentos estava plano. Da boca dele, do nada, começou a sair um líquido acastanhado, muito esquisito e, ao estar sozinho, ninguém lhe podia acudir. Rápida foi a mãe de Roberta, que ao reparar no barulho rápido e esquisito, diferente do habitual, que o monitor fazia chama uma enfermeira e um médico, além de ali estar Josué. Carlos é de novo aberto, noutro bloco operatório, este, já de cor vermelha, com materiais próprios de gastrenterologia e de oncologia médica. As horas começaram a passar de novo, muito mais devagar, para Carlos. Aquela cirurgia era definitiva. Em Portugal não existiam meios para que houvesse tratamento daquela terrível doença. Carlos tinha pedido a Cristina para não ser transferido para outro hospital, queria estar ali, no Algarve, e se tivesse de morrer, que naquele local acontecesse.

Não se sabe ao certo o que aconteceu na cirurgia, mas Carlos sai do bloco, agora entubado, ligado a mais máquinas, como que o fim estivesse perto. O único contacto que o hospital tinha era o de Roberta. Ao ligar-lhe é-lhe comunicado que ela é a responsável pela decisão do futuro para Carlos: ou continuava ligado às máquinas ou o desligavam e a morte chegava. Aos vinte e oito anos, a hora do fim estava mais próxima do que se imaginava.

Ninguém, ao olhar exteriormente para Carlos, não percebia que algo se passava. Na cara de Carlos apenas estavam olheiras, por vezes profundas e quando ele transpirava, de cor avermelhada.

O avião de Londres aterra em Faro. Josué tinha a sua viatura já à espera da filha no aeroporto. Quando chegam ao hospital, e a põem em contacto com o responsável com a equipa de transplantação, Roberta tinha de decidir, ou “o matava” ou “mantinha-o” vivo por mais tempo. Ela, naquele instante relembra-se de uma conversa que Carlos tinha tido com ela, quando estavam no secundário. Ele não queria que a vida fosse prolongada artificialmente, mas naquele momento, Roberta não ligou ao que ele pediu. E comunica ao chefe de transplantes que quer que ele fique ligado às máquinas por mais um tempo, porque queria estar com ele e podia haver como que um milagre e ele melhorasse.

Era apenas uma suposição, ninguém podia nem conseguia prever se tal facto iria ser consumado. Roberta, passou aquela noite no quarto da Unidade de Cuidados Intensivos de Gastrenterologia com Carlos. Ela trouxe a caixa dos textos, e dessa forma, punha-se a ler-lhe os textos que ele tinha escrito, junto ao seu ouvido.

Curiosa estava Cristina, porque Carlos não lhe tinha falado dos pais. Algo se teria passado com eles. Roberta, a partir de um momento, começou a chorar mais. Que se teria passado naquele quarto branco cheio de electrónica?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O antigo desejo de Carlos é a sua doença (XLI) - Uma nova vida em Londres

A distância que os separava não dava para que Roberta o acudisse. Apesar de ter acabado o internato e ter pedido, colocação no segundo ano da especialização noutro hospital de Londres, não estava à mão. Para Roberta, Carlos ainda estava naquela clínica.

Josué, após ter tentado estancar a hemorragia anal que Carlos tinha, não o consegue fazer, porque esta não começava ali. A úlcera estomacal que ele tinha rebentado definitivamente e o sistema imunitário dele estava cada vez mais fraco. Ele não admitia a doença que tinha. Ele não tinha tomado nenhuma medicação. Ele estava-se a destruir em silêncio.

A ambulância chegou. Carlos, voltado de barriga para baixo, é deitado na maca e a distância ao hospital ia diminuindo. A branquidão do interior da ambulância portuguesa contrastava com a cor da pele de Cristina que estava junto dele, apertando-lhe a mão esquerda.

A chegada ao hospital é feita de forma atribulada. Muito pior do que a chegada em Londres. As portas já abertas e o caminho para o bloco operatório quase que directo, ditaram a sentença daquele rapaz, já quase às portas da morte. Põem-no a dormir. Já bastante debilitado, os olhos dele fecham-se após a fraca respiração ter inspirado o anestesiante corporal. Enquanto os médicos lhe abriam o abdómen, Carlos estava quase como a dormir. Ali, naquele local de paredes verdes, estava um homem com um passado enorme. Enorme com “e” grande, desde os gostos esquisitos até às relações mais estranhas possíveis.

As horas iam passando e a “limpeza” corporal continuava. Os médicos tiraram-lhe o estômago. Em vez da sua cor habitual, a cor vermelha contrastava com a negridão da necrose. A seguir foram os intestinos. O apêndice estava completamente destruído. A peritonite pouco tempo faltava para aparecer. O início do intestino delgado, o cego, estava podre. O sistema digestivo de Carlos estava quase todo destruído. Como poderia sobreviver um ser humano sem estômago e sem o início do intestino delgado, sem aquelas supra-micro-fibras e vilosidades que ajudam a digestão.

Cá fora, enquanto Carlos era intervencionado, Cristina tenta, de novo, ligar a Roberta. Ela atende, e a primeira coisa que Cristina lhe diz é que Carlos tem cancro no estômago e que estava a ser operado no hospital naquele momento. Roberta, remexe, após ter desligado o telefone na cara da mãe, no gabinete de Carlos. Encontra três papéis fundamentais: um papel da empresa de conservação de esperma humano, um documento com a proposta de Carlos ir trabalhar para o hospital onde Roberta ia ser “residente” a partir de Outubro e por fim um relatório médico com a indicação de uma neoplastia maligna de grau cinco, o mais elevado e o mais crítico.

Roberta deixa-se cair no chão, e começa a chorar. Sente-se culpada de tudo o que vai acontecer.

domingo, 1 de agosto de 2010

A rotatividade da nudez e das relações (XL) - Uma nova vida em Londres

No fundo, com os meses passados estávamos em pleno meio de Agosto. Por tradição, a família de Roberta ia de férias nessa altura. Indiscretamente, pergunto a Cristina se queria que eu voltasse a Londres, aquela cidade de pouco alcance, fria, chuvosa, turbulenta, com um metroplitano antiquado, mas quente, alegre, serena onde vivia Roberta. Cristina responde que após ter falado com Josué, pai de Roberta, decidiram levá-lo de férias com ele, não só devido ao quarto clínico, de uma cirurgia recente, de um cancro no estômago  e com a cara que ostentava na maioria da vezes, mas também, porque achavam que estava na altura de perceberem o que Carlos era, como vivia, um pouco da sua história, e muito mais acerca dele.

O ponteiro dos segundos fazia "tic-tac" no relógio de Carlos e a viagem começa. No carro, algo longo de quase 300km, o silêncio das conversas constratava com o barulhento ruído da estação de rádio mal sintonizada. À chegada, o calor não existia. O fresco ar do mar lançava uma lufada de ar para o continente, e após arrumarem a tralha, vão para a praia.

Cristina começa a conversar com Carlos e este pede-lhe mais um tempo para se habituar à região, porque nunca lá tinha ido, e dispersa-se ao longo do extenso areal. A maré estava baixa. Carlos passa os pequenos rochedos que dividiam as duas praias e, entrou numa parte de nudistas. A vontade de sentir o que sentia quando era criança, e quando passava férias ao lado de um praia de nudistas, fez Carlos despir-se e estar como veio ao mundo. Uma sensação de liberdade, um prazer em sentir o vento em todo o corpo. Acaba por passear na praia dos nudistas e, quando regressa à praia onde estava com os pais de Roberta, volta a vestir o calção. Chega ao chapéu-de-sol e agora, é ele que vai falar com Cristina.

- Peço desculpa há pouco,disse Carlos.
- Eu percebi que precisavas de andar por aí sozinho. Mas diz-me agora, o que se passa realmente contigo?, perguntou Cristina.
- É uma longa história. Tudo começou no 10.º Ano. Foi nesse ano que os meus hábitos começaram a mudar e conheci a sua filha. Devo muito a ela. Sem ela, não seria o que sou agora. Mas não interessa. É algo que digo e sinto vezes atrás de vezes. Depois, às escondidas tentei tirar Medicina, mas as notas que tive no exame de Matemática não dava para eu entrar. Então alistei-me à logística. Tirei o curso e acabei por ser um dos melhores alunos. Havia uma vaga na empresa de transportes de Londres e eu acabei por aceitar e estagiar lá. Acabei por estar com Roberta no mesmo voo e revivemos os momentos do passado. Desculpe, mas não consigo. Não me quero lembrar dela agora., falou Carlos, estando com uma cara de tristeza.
- Que se passa? Não queres estar nem pensar na minha filha?, questionou Cristina.
- Não. Eu quero estar longe dela. Preciso de um espaço sem pensar nela, longe dela e sem ela... Mais tarde até lhe posso explicar porquê, mas agora não consigo., disse enfurecido Carlos.

Cristina, ainda com receio da história que Carlos tinha para contar, e tendo em conta a aproximação da hora de jantar, retira-se e os três, Josué, Carlos e Cristina regressam a casa. A aproximação da noite com uma ligeira brisa, contrasta com a noite que se avizinhava em Londres, com uma noite bastante chuvosa e nada convidativa a uma saída nocturna.

Roberta estava sentada na sua cadeira do consultório e consegue decifrar mais uma pista da surpresa de Carlos. Ela pensou da seguinte forma: De forma adolescentícia. O bem e o mal, o que é bom e o que é mau. De certeza que tem algo a ver com o berçário.

E lá foi, sai do gabinete dela e entra no berçário, onde estava uma caixa de fraldas guardada na terceira porta do armário AL. Lá descobriu outra pista:

Estás quase a chegar ao ponto final nesta aventura de descoberta. Faltam apenas três pistas. Esta diz o seguinte: O prazer carnal não é mais do que uma atenção para com os sentimentos. A amizade não é nada mais do que um passo intermédio, mas duradouro. No fundo todos os caminhos vão dar a Roma, quer dizer, o puzzle consegue-se montar e ouvem-se gritos.

Mais um mistério fez com que Roberta fizesse cara feia e fosse remexer, no seu quarto, em todas as memória que tinha de Carlos. Mas ela, no fundo, estava muito preocupada com ele. Ele não lhe dizia nada. Ela não sabia onde ele estava.

Horas mais tarde, Roberta ouve o telemóvel a tocar: era sua mãe, Cristina. A conversa baseou-se toda na pessoa Carlos e nos desejos dele, nas conversas que Cristina tinha tido com Carlos e na preocupação deste para com Roberta. Ao terminar a chamada, Cristina diz a Roberta para ela perceber o que está a fazer a Carlos, porque no fundo não foi só ele que se portou mal.

Mal Cristina desliga o telefone, naquela casa, tipicamente algarvia, Carlos tem mais um vómito ensaguentado e desmaia. Sem força nenhuma pede a Cristina para falar com Roberta acerca do seu cancro do estômago. Quando Cristina tentar ligar de novo a Roberta, Carlos começa a perder sangue pelo ânus, de forma incontrolada. Josué, médico, acorre rapidamente a Carlos, e ao gritar por uma ambulância, Roberta percebe que algo não está bem.